Você sabia que existe uma língua mais sensível que a sua?
Data: 11 de setembro de 2020
Autores: Pedro Fernando Almeida Lima Iack, Caio Marlon da Silva de Almeida, Ingrid Freitas da Costa, Ana Paula Bernardo dos Santos, Lívia Tenório Cerqueira Crespo.
Ilustrador: Caio Marlon da Silva de Almeida
Revisora: Lucineide Lima de Paulo
Estima-se que tenhamos aproximadamente 4 mil unidades gustativas espalhadas só em nossa boca, sem contar com o nariz, e 75% delas estão na nossa língua. Há diversas células responsáveis por identificar os diferentes gostos dos produtos que experimentamos – e em alguns casos nosso paladar e olfato são treinados para que possam avaliar até a qualidade de um produto. Essa técnica, chamada de análise sensorial (Figura 1), é utilizada no controle de qualidade de alguns produtos antes que cheguem às prateleiras e tem um grande valor para as indústrias interessadas em uma opinião que vá além das análises fornecidas pelos equipamentos.
Figura 1: Análise sensorial de vinho.
Fonte: Wine on Rio (2016)
Apesar de essas células serem muitas, quando provamos algo, não somos capazes de descrever todas as substâncias que estão ali presentes, nem fazer identificações do tipo “aqui temos 2g de glicose”. Diferentemente disso, nossos sentidos traduzem toda a diversidade das substâncias presentes por meio dos gostos que, ao serem combinados, caracterizam os sabores. Doce, salgado, azedo, amargo e umami são os gostos que conseguimos identificar e dizem respeito a substâncias presentes que conferem sabores específicos aos produtos. Dessa forma, não seria difícil imaginar a existência de alguma tecnologia capaz de atuar de forma similar à língua humana, porém trazendo informações e especificações além daquelas que conseguimos. Por isso, há anos, a Língua Eletrônica (Figura 2), vem sendo empregada em diversos setores industriais.
Figura 2: (a) Língua Eletrônica e seu uso para análise de bebidas; (b) Língua Eletrônica.
Fonte: (a) Embrapa (2015), (b) Associação Nacional dos Inventores.
Quando ingerimos algo, as células gustativas que entram em contato com o alimento mandam mensagem ao nosso cérebro por meio de neurônios, e ele será então capaz de nos descrever a mensagem final acerca do produto. Da mesma maneira, a Língua Eletrônica, quando em contato com o produto de análise, capta mensagens por meio da conexão elétrica entre os seus microssensores e as passa para o computador a que está conectada. Tais mensagens são, então, traduzidas por meio de programas em forma de planilhas e/ou gráficos que descrevem as informações da análise.
Os microssensores citados acima são revestidos de polímeros nanoestruturados, responsáveis por aumentar a conexão entre os microssensores e a sensibilidade de análise. A imprescindível presença deles faz com que, muitas vezes, a Língua Eletrônica seja denominada de “nanossensor”, sendo necessários 8 mil polímeros nanoestruturados para atingir o diâmetro de um fio de cabelo.
Todos os itens que compõem a Língua Eletrônica podem ser feitos de diferentes maneiras e com produtos diversos. Os sensores, por exemplo, podem ser de ouro ou grafite; e os polímeros, compostos de diferentes substâncias, como a polianilina e a poliamida. Da mesma forma, a programação dos softwares virtuais e o modo de funcionamento da Língua Eletrônica podem variar, tudo isso a depender do que está sendo analisado.
Essa tecnologia é capaz de identificar as substâncias que designam os tipos de gostos existentes nos produtos, a presença de substâncias estranhas, impurezas e aditivos, mas com uma especificidade mil vezes maior do que nossas células gustativas. É utilizada em diversos setores, entre os quais se destacam: indústrias de alimentos e bebidas, indústria de combustíveis, indústria farmacêutica, em equipamentos e métodos para análise de água e até mesmo na área médica. Nesta última, chama atenção o uso na análise da urina humana para descoberta de câncer de bexiga. Na indústria de combustíveis, por exemplo, é capaz de detectar se houve alguma adulteração.
Sabendo-se a composição presente em alimentos e bebidas, a Língua Eletrônica é capaz de identificar substâncias estranhas naquele meio, provenientes de contaminação ou de reações químicas indesejadas, como no caso de produtos estragados. Na análise de vinhos, a tecnologia é capaz de identificar as especificidades de cada safra e até de diferenciar uma marca de outra. Na análise de café, responde se houve uma boa colheita, ou se os grãos correspondem à qualidade esperada.
Os medicamentos, que também apresentam gostos provenientes de sua formulação, podem ser analisados da mesma maneira: a Língua Eletrônica permite identificar as substâncias responsáveis pelo seu gosto antes mesmo do consumo pelos humanos. Além do mais, substâncias medicamentosas podem ser encontradas em amostras de produtos alimentícios, bebidas ou até mesmo da água, apresentando-se como contaminante. Quanto maior a especificidade na identificação desses, melhor são as atitudes de prevenção ou de descontaminação, acarretando em menos prejuízo para a saúde humana. Como exemplo, há um estudo para a identificação de antibióticos em leite.
Para análise da água, existe uma lista com mais de 150 compostos considerados poluentes, e alguns destes são passíveis de identificação por meio da Língua Eletrônica, como é o caso do ibuprofeno.
A primeira Língua Eletrônica brasileira foi criada em 2004 nos laboratórios da EMBRAPA com a intenção de melhorar o café produzido pelas empresas nacionais. Entretanto, antes dessa criação, já havia sido criado nacionalmente o primeiro Nariz Eletrônico, em 2003, com a intenção de identificar melhor certos odores, gases e aromas. Esses dois sistemas são similares, contudo o Nariz Eletrônico (Figura 3) é usado para monitorar processos químicos que envolvam gases. Assim, este dispositivo tem aplicação nas indústrias farmacêuticas, de cosméticos e de alimentos. Como exemplo, nos setores alimentícios auxilia no controle de qualidade do produto e sua maturação ou contaminação. Ele também é útil para identificar se há presença de gases tóxicos dentro de naves espaciais, resguardando as vidas dos astronautas, e na área militar, avaliando a detecção de materiais explosivos, armas biológicas e drogas no ambiente.
Figura 2: Nariz Eletrônico
Fonte: Embrapa (2015)
O Nariz Eletrônico tem entre 5 e 100 sensores químicos e é programado para cada aplicação. Ele é feito de nanofios de dióxido de estanho distribuídos nesses vários sensores individuais. Um chip calcula padrões de sinais específicos a partir das mudanças de resistência desses sensores e, com isso, ocorre a identificação dos odores dependendo das moléculas presentes no ar. Esses sensores diferenciam vários aromas em segundos. Apesar de o Nariz Eletrônico ter um menor limite de detecção (10-7 – 10-6 g/mL) que o nariz humano (10-12 – 10-9 g/mL), ele é muito mais preciso e exato que o nosso olfato.
Já é fato que a nanotecnologia vem para trazer utilidades e facilidades para o nosso cotidiano. Em tempos de pandemia, quando a limpeza dos itens e superfícies é um ponto fundamental, seria ideal ter uma tecnologia de autolimpeza, né?! Será que já não existe? Vem saber na nossa próxima nanocuriosidade!
Fontes:
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